segunda-feira, 14 de maio de 2012

TESTEMUNHO - CAPÍTULO 1

                   A escola             

Adentrei o lugar, coração palpitando, mãos molhadas, boca seca, emocionado. Era minha primeira vez, meu primeiro dia. Sentei na carteira indicada, outros sentaram também, fiquei incomodado a princípio, para mim era como uma pequena prisão. Parado, quase imóvel, era uma tortura. A hora passou... Alienei... Divaguei... O pensamento se foi...

O aeroporto de Ubatuba, o campo, as árvores frutíferas e floríferas: o araçá, o mandacaru, a goiaba, o ingá, o abil, o espaço imenso, os animais na pista, os aviões, os aviadores, a igreja, a escola dominical... Aquele sim era meu mundo, com espaço e liberdade. Ali eu tinha nascido e queria ficar. Queria voltar para meu mundo, para minha vida, para meu lar, a escola era como um castigo, uma prisão.

Sai daquele marasmo, voltei para a aula... Para a prisão... Aquilo não era vida... Revoltei-me. Revolta até certo ponto contida, pois meu pai não podia saber. Ele era autodidata. Por ter aprendido a ler e escrever sozinho na Bíblia valorizava muito o ensino, queria os filhos na escola e “a mão dele era pesada”, além do mais tinha uma cinta de couro que queimava as pernas e o lombo. Minha mãe também era bastante convincente, quando queria ou fazia suas exigências. Lembrei-me da mangueira de dois metros que ela manejava com grande habilidade. Não... Decididamente eles não poderiam saber de nada.

            Virei um “demônio”, um “capeta”, um revoltado e só tinha seis anos. A professora Zélia era minha inimiga, reagia, era uma verdadeira guerra. Levei reguada, apanhei de apagador, puxão de cabelo, me pegou pelas orelhas, me colocou ajoelhado nos grãos... Ora milho... Ora feijão. Ameaçava contar para meu pai, mas... Não contava. Sabia que no dia seguinte eu apareceria todo alanhado com as marcas da grossa cinta dele. Nesse ponto éramos cúmplices, nem eu contava o que ela fazia comigo, nem ela comunicava a meu pai as minhas estripulias.  Um dia ameaçou levar-me para a sala da caveira... Apavorei, “A sala da caveira não...” Pensei. Pulei a janela (muito alta por sinal), fugi, só voltei uma semana depois. Todo o dia matava a aula e ia parar na praia do Perequê-Açu, no outro lado da cidade, porém minha mãe desconfiou, mandou meu irmão maior me seguir e fui pego no flagrante matando aula e fugindo da professora, por isso na semana seguinte estava de volta à sala de aula.

Era uma guerra. Fiquei agressivo. Não tinha mais minha liberdade, não tinha a vida que queria, então reagia com ímpeto selvagem, brigava na escola, brigava na rua, brigava muito, não era normal. Quase todo o dia eu dava o meu show de pancadas. A turba me acompanhava. Virei o astro do show, estava gostando do sabor do sucesso. Tinha até torcida. Não conseguia perceber o ridículo da situação, pois a galera toda se reunia para assistir um espetáculo grátis de pura selvageria. Aí um “negão” bateu no meu amigo. Era enorme, mas, ameacei “pegá-lo” na rua. E aconteceu... Foi um desastre, o menino era repetente, grande, forte. Resultado: uma surra colossal. Apanhei muito. Os frentistas do posto de gasolina[1] correram para me socorrer, separaram... Voltei, separam... Voltei, separaram... Voltei. Só tinha um jeito, me seguraram e mandaram o “negão” embora, porque senão, com certeza, ele me mataria de pancada; afinal o pequeno garnisé apanhava, mas, não saía da briga, se continuasse iria sair machucado. E lá se foi o garoto protestando: “É ele, ele que vem pra cima de mim, ele é que tem que ir embora”. Voltei-me contra os homens do posto, levei uns “trancos”, uns sopapos, umas broncas e fui embora, fim do show...

Meu pai não soube ou fingiu que não perceber meus ferimentos, para evitar me dar “um complemento” com a, já conhecida, cinta que levava na cintura. A guerra continuava. Eu lutava contra tudo e todos, mas, a professora Dona Zélia não desistia, insistia, lutava contra minha ignorância. Obrigava-me a ler e escrever. Eu perdia tudo, lápis, borracha, caderno, etc. e improvisava. Cortava o chinelo e fazia uma borracha, borrava o caderno, sujava tudo... Apanhava, era uma guerra. E eu não percebia, mas estava perdendo.

Ela vencia. Eu estava aprendendo. A trancos e barrancos, mas estava aprendendo. Estava sendo dominado. Era semelhante a um cavalo selvagem na mão de um vaqueiro experiente. Não tinha idéia nessa época, que espiritualmente também passaria por experiência semelhante. Não poderia imaginar que um dia meu espírito rebelde e agressivo teria um encontro frontal com o criador e passaria por outra experiência semelhante com um grau de intensidade acima de qualquer perspectiva humana.

Dois anos se passaram... Ela venceu... Eu estava domado. A escola com toda a sua estrutura, com toda a sua força me venceu, me dominou, me seduziu, me ensinou, me segurou, e nunca mais saí de dentro dela, já estou dentro dela há cinquenta anos, a princípio como aluno, hoje como professor, e a vida continua...

A professora... D. Zélia era uma heroína, vencedora, conseguiu um milagre. Nos dois anos seguintes fui um dos melhores alunos da classe e passei no exame de admissão sem frequentar o curso. Ela merecia um prêmio. Quando entendi, quando dei valor, já era tarde, nunca mais a vi, ela tinha mudado para outra cidade, porém, tinha deixado uma lição de vida. Levei “uns tapas” sim, mas no meu caso será que alguém conseguiria de outra maneira? Hoje sabemos que o foco do ensino aprendizagem está voltado, não em como o professor ensina, mas sim em como o aluno aprende[2], por isso o desenvolvimento de novas técnicas de ensino, somado a tecnologia de nosso século e os estudos do cérebro humano, podem produzir melhores resultados sem utilizar os “psicotapas” do passado, mas infelizmente não era uma criança do século XXI e sofri na pele as dificuldades pedagógicas do passado, que nem por isso deixaram de fazer efeito.

Essas memórias fazem parte de minha vida, de minha infância, de meu cotidiano de vida anterior ao mundo adulto e ao conhecimento de Cristo, fazem parte de uma trajetória que Deus preparou para minha vida (e que trajetória conflitante), para que um dia fosse útil a Ele e Seu propósito de salvação de vidas e me alegro, porque em meu livre arbítrio me posicionei a favor dos interesses divinos no momento oportuno. Todos nós cedo ou tarde temos ou teremos a oportunidade de fazer escolhas e feliz é o homem ou a nação que se posiciona de modo a agradar ao Senhor Deus Todo Poderoso e Criador de toda a Terra. “Provai, e vede que o SENHOR é bom; bem-aventurado o homem que nele confia”, (Sl 34.8).



[1] No Grupo Escolar Dr Esteves da Silva, onde estudava em Ubatuba havia um posto de gasolina conhecido por Posto do Fredianne. Os frentistas do posto vieram em meu socorro, mas cego pela ira agredi o frentista, do qual também levei uns sopapos.
[2] Estudos de Piaget, Emília Ferreiro e Vigotsky mudaram radicalmente o foco do processo de ensino-aprendizagem em vários países e em alguns estados do Brasil, inclusive no estado de São Paulo onde vivo e trabalho.

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